terça-feira, 23 de setembro de 2014

Escrevendo em mim

Ela estava ali ao meu lado, ajoelhada na frente da mesa de centro, na sala da avó paterna. A sugestão de brincar de desenhar foi minha. A vontade de colocar sua mãozinha sobre o papel e contorná-la com canetinha laranja, foi dela. O pedido de ter, em seguida, minha mão desenhada por ela, foi meu. Mas ela recusou. Ao invés disso, trocou o laranja pelo vermelho, se inclinou um pouco para frente, encostou a barriguinha na mesa e a ponta da canetinha no meio da pequena mão que havia acabado de desenhar. Olhei compenetrada para o papel quando a tinta começou a marcá-lo de um jeito que eu nunca havia visto. Quando percebi o que Luna estava fazendo, meu olhar foi direto para o rosto dela. Durante aqueles poucos segundos, meu sorriso ficou meio de lado, com uma gotinha de lágrima pendurada nele. Quando ela terminou, podia ser lido: LUNA.

Isto aconteceu há alguns meses. Mas, além de guardar aquele pedaço de papel, eu queria que aquele momento ficasse guardado para sempre. E agora vai.

Gostaria muito de agradecer a Tia Val, que foi a principal responsável por aquelas quatro letras agora serem escritas assim juntinhas, fazendo tanto sentido para aquela que as carrega em si.

O espiral é uma brincadeira nossa, desde que a coordenação motora de Luna começou a se desenvolver um pouco mais: vamos nos alternando no desenhar, uma começa com a cor que quiser, a outra continua com outra cor que escolher e assim vai, até as voltas não caberem mais no papel.

A arte foi nossa, minha e dela, mas a marca na pele foi do Leandro. Obrigada por me aguentar fazendo caretas e reclamando de dor.

Papai também fez igual. É muito amor!


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Clara


Estimulantes da coordenação motora, eficientes para auxílio em tratamentos, aliados contra o estresse e no controle da frequência cardíaca. Ajudam no exercício da autoridade e estimulam a responsabilidade. “Professores” no quesito respeito à preservação da vida e limite à dor. Companheiros leais.

Estas frases viraram um mantra pra mim desde que marido apareceu com uma proposta indecente. Eu pensava na minha filha e voltada a repetir as frases mentalmente, num processo de auto-convencimento de que “aquilo” poderia trazer mais benefícios do que problemas. Quando marido comentou sobre o assunto pela primeira vez, minhas reações foram “De jeito nenhum”, “Nem pense nisso” e “Minha resposta final é Não!”. Ao longo da vida gente se pega eliminando, sem pensar, muitas possibilidades de experimentar e viver fora da caixa. Muitas vezes, precisamos de alguém do nosso lado tão insistente a ponto de enlouquecer qualquer santo pra nos fazer repensar, ponderar e ver tudo de outra forma. E a gente amolece o coração, fecha os olhos e se joga em direção ao novo.

Pra quem não acredita em amor à primeira vista, nosso caso quebra paradigmas. Foram meses de procura em sites, indicações e visitas. Mas quando ela apareceu numa publicação online, coraçãozinho mole do marido teve a certeza: era ela!

Seria ela a comer meu sapato esquecido na sala, virar o lixo da cozinha, rasgar o peso de porta – feito de areia – criando pequenas dunas, aqui e ali e morderia os tapetes da sala e da cozinha. Ela faria com que reorganizássemos a casa toda - e a vida! - pra recebê-la. Ela que deixaria a casa cheia de pêlos e aquele cheiro bem peculiar no ar, que nem os banhos semanais poderiam eliminar por completo. Ela que deixaria Luna confusa e irritada, passando por um processo de entender que algumas coisas fazem parte de seu comportamento e instinto, como lamber, cheirar e “morder” seus brinquedos... E seus pés. Ela que me faria estender roupa na ponta dos pés, pra não pisar no jornal sujo e limpar “você sabe o que” quando marido estivesse doente.

Mas seria ela a abanar o rabo quando abríssemos a porta, latir pedindo atenção, “morder” a mão pedindo carinho, olhar pela janela quando saíssemos, choramingar de saudades e vir correndo com brinquedo na boca, a qualquer hora do dia, da noite, ou da madrugada. Ela seria nossa companheira no sofá e nossa sombra pela casa. Ela que me faria brincar de pega-pega em volta do sofá às onze da noite, depois de um dia longo de trabalho e estudo. Por ela, Luna daria meia volta no corredor do condomínio, só pra se despedir com carinho e abraçar a “filha” com todo amor que poderia dar pra um serzinho tão diferente dela. Ela que faria com que a família toda desse voltas pelo quarteirão num fim de tarde de verão, e faria com que a solidão jamais entrasse naquela casa.

Nossa Clara.
 
 

Ele



Ele brinca na areia, no mar, na piscina, no parquinho e em casa. Joga pro alto, vira de ponta-cabeça, brinca de equilibrista. Ele grava, compra e faz coleções de filmes e desenhos infantis, só pra ela. Planeja viagens pra praia, um dos lugares para onde a pequena mais gosta de ir. Ele é o colo preferido no sofá; nem a almofada mais fofinha ganha do seu peito transbordante de amor. Tem tanta saudade dela, que perde a noção do tempo e faz o ‘ontem’ parecer uma eternidade. E o ciúme?! Queria ela só pra ele.

Estou falando de um homem do presente, fazendo hoje 56 anos: o avô da minha filha. Mas, com a mesma intensidade, falo sobre a relação de um cara com seus 27 anos, pai de primeira viagem, com outra menina: eu. Não sei por quais veredas seu coração e sua mente passaram quando recebeu a notícia da chegada da Luna, mas no amor e na dor, porque a vida sabe jogar difícil com a gente às vezes, fomos juntos aprendendo e reaprendendo: ele, a ser pai; eu, a ser filha; ele, a ser avô; eu, a ser mãe; e juntos a entender as relações que fomos construindo.

E como não ser nostálgica como ele por perto? É só olhar para o lado e vê-lo com minha pequena: todas as boas lembranças voltam num piscar de olhos. Com a diferença de uma barba. Luna se deu melhor do que eu, hoje ele conserva o rosto sempre lisinho, pra não arranhar a neta. Não tem mais aquele monte de pelos que assustava a criancinha 30 anos atrás.

Pai, obrigada por tanto abraço e tanto colo; pelas broncas e castigos; pelas conversas e histórias. Por ser meu Papai Noel, meu Coelho da Páscoa e minha Fada do Dente. Obrigada por ser meu exemplo de vida e por me fazer entender toda preocupação e cuidado que sempre teve comigo e hoje devolvo uma pequena parte: cuidado ao andar na rua e tranque as portas antes de dormir.

Amo você.

(09/03/2014)




Frio na barriga



Frio na barriga naquele 1º de janeiro, quando te vi pela primeira vez, sem saber que você, era você e, pouco tempo depois, seria VOCÊ. Estava dançando e me veio aquece frio, aquela excitação, por te ver fazendo algo que era tão familiar pra mim. Vi você, sem ver seu rosto. E eu não sabia que um dia conheceria este rosto tão bem, tão de perto.

Frio na barriga quando me tirou pra dançar pela primeira vez. Foi naquela noite que nos olhamos. Trocamos duas ou três palavras: “Quer dançar?”. “Claro”. As seguintes foram silenciosas, corporais, gestos das mãos, cabeças, olhares. E eu não sabia que pegaria em suas mãos tantas e tantas vezes e trocaríamos tantas outras palavras silenciosas.

Frio na barriga naquele dia de sol, no parque, cada vez que você me jogava pra cima e me girava no ar. A primeira aula de aéreos. Experiência completamente nova. Professor e aluna. Eu tive confiança em seus movimentos desde o primeiro segundo, desde o primeiro passo no ar. E eu não sabia que me sentiria tão segura com você, em tantos outros momentos da vida.

Frio na barriga naquele primeiro encontro, meio permitido, meio proibido. Sala de cinema, filme bom, conversa boa e o frio na barriga. O primeiro beijo. E eu não sabia que nos beijaríamos tantas outras vezes e que os sentimentos envolvidos neles poderiam ser tão diferentes.

Parada na calçada, esperando o semáforo abrir, quando ouvi aquele pedido de namoro que não poderia ter acontecido de outro jeito vindo de você: “Fala pra ela que sou seu namorado, oras!”. Foi um período difícil, cheio de frios e arrepios. E eu não sabia que, de um jeito ou de outro, seríamos namorados até hoje.

O mais friorento de todos aconteceu no corredor de um shopping. Duas listras vermelhas completamente inesperadas me deixaram congelada, da cabeça aos pés. Fisicamente, a barriga estava quente, uma vida crescia ali dentro, mas emocionalmente eu não conseguia sentir o calor. Você, desde o primeiro segundo, começou a derreter a barreira que havia se formado em mim. E eu não sabia que aquela borboletinha criaria uma ligação tão forte entre nós, para sempre.

Vieram tantos outros frios na barriga, tantas escolhas a serem feitas em tão pouco tempo. Foram meses de vida virando de cabeça pra baixo, enquanto Luna, lá dentro, dava suas voltinhas também, acompanhando nosso ritmo intenso: médicos, laboratórios, exames, lojas de construção, lojas de bebê, lojas de móveis, visitas a tantos e tantos imóveis, até acharmos aquele que chamaríamos de casa. E eu não poderia imaginar a intensidade de momentos que viveríamos ali, debaixo daquele teto.

E aquela borboletinha nasceu. Todo processo me deu frio na barriga, na espinha, nos pés e nas mãos, mas você esteve sempre ao meu lado.  Desde então, tudo mudou. E eu passei a sentir incontáveis temperaturas corporais diferentes, físicas e emocionais. E elas me fizeram ser o que sou hoje. Nossos primeiros dias em casa; o primeiro banho que dei na pequena, depois de muita insistência sua em tirar aquele medo que eu sentia de machucá-la; sua primeira viagem a trabalho, quando Luna tinha apenas um mês de vida; a minha volta ao trabalho e a ida da Luna para a escola; a despedida da minha avó querida; a chegada da Clara; a escolha e os desafios de começar a pós-graduação; nossos passeios em família; nossos passeios a sós.

Os frios na barriga são diários. Quando saio para trabalhar e tenho que me despedir de vocês; cada vez que toca meu telefone e vejo seu nome nele; quando chego em casa; quando brigamos; quando fazemos as pazes; a cada nova decisão a ser tomada.

Coração acelerado quando li aquela frase na almofada vermelha: ‘Frio na Barriga’. Lembrei-me de todos os frios na barriga que senti desde que te conheci. Sei que muitos outros ainda virão, e que estaremos juntos transformando o frio, em calor.



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Pulsando

(Texto escrito em 13.01.2014)

Querida Luna,

Você ainda não sabe, mas quando sua mãe nasceu, eu vim com “defeito de fábrica”; mas durante alguns anos, nada seria percebido. Quando adolescente, ela descobriu que tinha arritmia – um distúrbio no ritmo em que eu batia. Nada grave, sem causas aparentes: ela não fumava, não ingeria álcool, cafeína, muito menos cocaína, e não tinha o menor sinal de estresse. Descobriu, porque comecei a bater acelerado e com tal intensidade que, quando um copo com água era colocado sobre seu peito, a água balançava e espirrava pra fora do copo. Passou alguns anos controlando com medicamento, até que resolveu parar por conta própria, pois os sintomas haviam desaparecido.

O que ela não sabia, era que, anos depois, me faria trabalhar e bater descompensado e fora do ritmo para o resto da vida. As alterações começaram na gravidez, quando ela passou a prestar mais atenção em mim, e percebeu que eu bombeava com mais intensidade, pra te atender. Só ficou mais tranquila quando fez os exames e concluiu que, além da maior necessidade de circulação sanguínea, estar tão perto de você me deixava extremamente animado! Se sua mãe soubesse que ter você faria com que eu batesse tão apertado, acelerado, preocupado, histérico, emocionado, orgulhoso, entristecido, divertido, e transbordante de amor até meu último pulsar, ela acharia aquela arritmia da adolescência coisa de amador.

Os olhos de sua mãe são os meus olhos; seus ouvidos, os meus. E, há exatos três anos, cada vez que você aparece no campo de visão, ou que o timbre de sua voz chega até mim, aquela constância rítmica muda, desequilibra e perde o foco da contagem. A cada ano que passa eu encontro novas formas de bater, tudo é sempre novo pra nós. Sou um órgão muscular oco, envolto por um saco cheio de líquido chamado pericárdio, localizado no interior da cavidade torácica; e você vai continuar sendo o motivo pelo qual pulso, todos os dias. Obrigada por cada pulsar.

Assinado: Coração de mãe